- Mãe, preciso de escrever o artigo.
- Ah, sim? Hoje?
- Sim, Mãe, hoje. Disse-to a semana passada. E alguns dias esta semana.
- E tens até quando para o escrever?
- Mais dois dias.
- Só?! Dois dias?! E estás aqui, a falar comigo?! Meu Deus, oh filha, tens de ir!
- Pois tenho, Mãe… Por isso…
- Mas, olha, porque não o escreveste na sexta?
- Trabalhei todo o dia, depois corri para minha casa e depois mais três transportes para tua casa e, finalmente…
- E no sábado? Já estavas cá, podias ter feito isso no sábado. Assim, num bocadinho…
- Pediste-me para ir à feira e ao Lidl, à farmácia, à senhora dos ovos, ao multibanco, à padaria. E depois ao…
- Ah, pois foi… Mas, ontem, sim, ontem, podias ter tirado um tempinho para isso.
- Podia… Mas quiseste ir apanhar ar, estavas farta de estar em casa, e isso era mais importante, claro que sim. Quiseste ir à missa e à praia, felizmente por esta ordem… E caminhar, caminhar, durante horas.
(Já me sinto a delirar: Nossa Senhora do Esferovite me auxilie, S. José do Poliester, São Tótil Ignácio, todos comigo, de mãos dadas e coração pleno, neste momento de agonia.)
- Mãe, tem mesmo de ser hoje. Só preciso de umas horas sem interrupções para poder escrever.
(Mãe, estou a “panicar” e o prazo a terminar. Não vês o alerta, em néon, sobre a minha cabeça?!)
- Oh, filha, claro que sim, vai lá escrever. Vou ligar à tua tia, ainda não falei com ela desde que tive alta, e à Antónia, ao enfermeiro Amílcar, à Rosa e à Irmã Benedita. E não ligo a mais ninguém, mais ninguém! Não me apetece falar com ninguém, estou tão cansada... Mas queria mais qualquer coisa, espera… O quê, meu Deus? Ai, esta minha memória, filha.
(Eu de pé, “vai-não-vai”, na antecâmara da crise cardíaca, aproveito a pausa para respirar.)
- Boa, Mãe... Vai lá então fazer as tuas chamadas. Eu preciso mesmo de escrever.
- Claro, filha, vai, não percas mais tempo. Depois atrasas tudo e deitas-te tardíssimo, não pode ser.
- Eu adorava dormir mais tempo, acredita, e poder deitar-me mais cedo. Adorava escrever de dia, debaixo do sol e sem me babar sobre o computador, mas ainda não dá, não é, Mãe? Compreendo que precisas de ajuda e é um prazer fazer o cardápio do dia, tratar de nós, da tua casa e da minha, das compras, do teu felpudo canídeo, dos banhos, das tuas múltiplas solicitações e, claro, não te angustiar com as minhas tarefas, como este artigo que preciso mesmo de escrever. Por isso, Mãe, resta-me uma ínfima parte da noite, até a saliva mergulhar no teclado.
- Pois é, filha. Mas tens de te deitar mais cedo. De noite é que se dorme! O teu corpo a pedir-te descanso e tu a forçá-lo a um esforço tão grande. E se já estás a dormir, já não te rende o tempo. Mais vale ires para a cama.
- E quando escrevo?
- De dia! Organizas-te e consegues!
(Respirações profundas, língua mordida com afinco.)
- Ok, Mãe. Vou estar na cozinha. Tens o tabuleiro na sala, o chá está a escaldar, como tu gostas. Fiz-to agora porque o querias agora mesmo. Por favor, senta-te, descansa e toma o teu chá, tranquila.
- Ah, que bom, filha! Obrigada. É mesmo isso que me apetece, vou então. Bom trabalho, concentra-te que é para fazeres isso depressinha.
(Caminho em silêncio para a cozinha. Não quero fazer nada, rigorosamente nada, que lhe lembre que parti. Sento-me em frente do computador, olho para o documento Word. Fecho os olhos. Suplico: Inspiração, desce sobre mim!)
- Filha... Estás aí?
(Oooommm... inspirações profundas, expirações suadas.)
- Sim, Mãe...
- Desculpa, filha. É só uma coisinha. Se vires que ainda não interrompo nada importante, é claro. É só um minuto.
(Importante? Como é possível que me ocorra algo, seja lá o que for, quanto mais importante, numa fração de segundo de silêncio? Como?)
- Diz, Mãe...
- Podes vir cá, por favor? Não quero gritar para não perturbar a tua concentração...
(Arrasto os pés até à sala e componho o ar traumatizado. Apresento-me ao Xá da Pérsia, sem desvelo. Aguardo a ordem.)
- Oh, filha, desculpa. Podes por favor abrir mais a janela, chegar o cortinado para trás e ver se deixei o comando da TV na cozinha?
- Não está na cozinha.
- Ah, não? Hmmm… Estranho… Não fui a mais lado nenhum. Oh filha, por favor, procura-o. Sem ele, o que é que eu faço? Precisava de arranjar estas unhas, estão horríveis. Um verniz bonito, isso é que era, tenho aqui uns novos, já tos mostrei? Mas, pelo sim pelo não, comprei o meu preferido. De vez em quando, apetece-me experimentar uma cor nova, mas raramente gosto de a ver em mim, tu sabes… Experimenta tu, um dos novos. Mas, pronto, agora não que tens de trabalhar, eu entendo. Agora, agora queria o comando. Estou para aqui a pensar que não fui a lado nenhum, onde pode estar o comando?
(Rally paper, percurso: todos os sítios onde a minha mãe não esteve... um tempo infinito depois, encontro o comando no quarto de banho.)
- Não pode ser!
- Sim, Mãe, estava no lavatório, atrás da escova do cabelo.
- Mas não fui a mais lado nenhum! Só à cozinha!
- Foste ao quarto de banho. Está tudo bem, Mãe.
- Ai, filha, tudo bem, nada! Parece que alguém o foi lá pôr. Ai, Deus me acuda e me livre do mafarrico; credo!
(Alguém me acuda a mim. Alguém me segure. Alguém me amordace, depressa…)
- Mãe, agora vou mesmo, está bem? Daqui a pouco é hora do jantar.
- Ah, sim, pois, vai, vai, filha. Não te percas na conversa. Não vou chatear- te mais, ok? Vai lá que é para acabares isso e jantarmos. E para irmos para a cama cedinho, está bem?
(Vigésima nona interrupção, duas linhas de texto depois.)
- Filhinhaaa… oh… desculpa… ainda demoras? Era mesmo só uma coisinha muito rápida.
(Vou chorar tanto… tanto…)
- Diz, Mãe.
- Olha, filhota, não te queria aborrecer mas o chá está gelado, sabes que gosto dele bem quente. Se calhar esqueceste-te, não faz mal, mas para a próxima… Está bem, filha?
- Mãe, não me esqueci. Estava quente, duas horas atrás.
- Ah… E disseste-me?
(Inspira fundo, expira flores…)
- Dá cá o chá. Vou aquecê-lo, outra vez.
- Obrigada, filha. E o cortinado, podes fechá-lo um pouco? E a janela? Está a ficar frio. E já escreveste alguma coisa?
- Quase nada.
(Pânico total neste momento.)
- Oh filha, tens de te disciplinar, sabes? Distrais-te muito facilmente, assim não dá. Tens de ter aquela organização de trabalho que não se desvia do objetivo. E concentrares-te, é isso. Senão, não há milagres.
(A sério, Mãe? Ai que se me grita a alma cá dentro. Dás comigo em louca.)
- Não dizes nada, filha? Pareces um pouco cansada. Ou chateada… não percebo bem.
(O meu telemóvel toca, noutra divisão da casa.)
- Filha, não atendas!
- Não pretendia atender. Preciso de trabalhar.
- Tens de dizer às pessoas que não podes estar ao telefone. Não podem estar a interromper-te senão então é que não fazes mesmo nada. Diz-lhes que tens de trabalhar!
(Sinto o nó na garganta e o punho no estômago.)
- Não são os que telefonam que me impedem de nada, Mãe, vês? Basta não atender. São aqueles que me olham nos olhos mas não me veem nem me escutam.
- Filha, eu entendo-te. Isto é um mundo cão, de gente sem empatia nem lealdade. E tu és uma mulher de causas, como eu, bem sei. Mas as pessoas têm de saber que não estás sempre disponível. Tens de aprender a dizer não, filha. As pessoas são muito egoístas e não percebem estas coisas sozinhas; são cegas, ce-gas! Ouve a tua mãe que te quer bem. Vai poupar-te muitos dissabores! E os bons, esses, vão entender perfeitamente, acredita!
(Estou prestes a desancá-la, azeda e viperina, sem filtros nas palavras. Como se isso não bastasse, a criatividade, hoje, não quer nada comigo. Ah, desespero… Desisto…)
- Mãe, vamos ao verniz: a tua cor habitual?
Alexandra Vaz
Recent comments