O dia nasce estranho e sombrio coroado por gritos loucos de álcool e drogas que ecoam por toda a cidade, pelas ruas onde deambulam as estranhas criaturas da noite, algures um cão uiva, um condutor louco faz chiar os pneus enquanto são escutadas as sirenes da policia.
Ele acende mais um cigarro, a chama do isqueiro ilumina momentaneamente o escritório negro como o breu onde ele se deixa embrenhar pelos seus pensamentos completamente alheio a qualquer melodia produzida por aquela madrugada de sábado. Calmo e sereno ele abriu a janela para respirar o ar frio da manhã, deu dois tragos seguidos no cigarro como sempre fazia, olhou para o céu que estava em tons lilases e azuis como qualquer madrugada e o pensamento voou para longe dali para lá do mar nas asas de uma gaivota imaginaria da sua mente, navegando pelos mares imaginários a bordo de uma caravela igual ás que cruzavam o oceano em tempos idos onde a glória de um império decadente ainda idealizado nos dias de hoje por saudosistas de um passado que se calhar só existiu em livros e em historias muito diferentes daquilo que realmente poderá ou não ter acontecido. Historias de corsários, piratas e sereias passaram-lhe momentaneamente pela cabeça imaginando-se como um deles, da proa de uma caravela, mais um travo no cigarro e de repente já estava a galope de um garanhão lutando pela paz do reino ou pela mão de uma qualquer princesa em perigo. Aquele já se apagou, acende mais um cigarro, fantasia mais um pouco e acende mais um cigarro, o ritual que se repete a cada madrugada, a cada alvorada de insónias umas a trás das outras , chegando ao ponto de não se lembrar quando teria sido a ultima vez que o seu corpo terá sentido o linho dos lençóis, provavelmente dormitava no sofá daquele bafiento e sombrio escritório do qual fez sua morada nas ultimas semanas após aquele trágico acontecimento, que mudou a sua vida de um momento para o outro, vida? Qual vida? Aquilo não era viver ele sentia-se um cadáver e o seu aspeto era quase o de um não fosse estar a respirar e a barba que lhe crescia sem parar, já nem se lembra desde quando e nesse momento ao tocar com a mão pela cara ele sente a cara limpa sem nenhum sinal de pelos, o que para ele é bastante estranho visto ser vasta a quantidade de dias que ele já está confinado naquele espaço.
Observa de momento a janela, e pela janela observa o mundo, um mundo que deixou de ser o dele e passou a ser o mundo dos outros, daqueles que ainda estão vivos, ou pelo menos daqueles que ainda têm motivos para viver e para sorrir, o que é um sorriso? Ele já não se lembra dos dias em que sorria e sabia o que era sorrir esse exercício que serve para demonstrar alegria e satisfação, e alegria o que seria a alegria? Ele já não sabia, ele já não se lembrava, pois vivia preso numa tristeza imensa desde aquele instante que o afastou do mundo dos vivos e o fez ingressar noutro plano, aquele instante em que ele fora encontrado caído ao lado da secretária com os pulsos rasgados e o chão banhado em sangue, ele ficara preso naquele escritório desde aquele fatídico dia, o dia do seu suicídio.
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