AS FADAS

 

AS FADAS

Portuguese
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AS FADAS (CONTO)

Afonso era o nome que um dia recebera numa encosta do Monte da Lua, por consenso e por natureza em Santa Maria, mãe de Deus e mulher como as outras. Afonso era sensível às pequenas coisas e às grandes também. Vivia hoje na oficina-quarto da avenida Marginal, entre lençóis e tintas e entre amores e ideias, Afonso optara por aquela existência fútil no mundo dos sonhos, era este o homem completo em quarto alugado, como tantos em Lisboa, e também incompleto porque como os outros nascera para morrer, aos poucos talvez, mas para morrer certamente, e com aquele nome de Afonso baptizado com as águas de Santa Maria Vulgar Mulher. O verão estoirava e do calor irradiava aquela luz que cega todos os movimentos, Afonso paralisado e fechado no quarto sem janela, ao brilho da luz artificial enganava o tédio naquele habitáculo alugado por combinada quantia, debalde sonhava acariciando o corpo nu da mulher que não existia. Comprometedor, Afonso cujo nome trouxera da serra, não desistia e amava mesmo! Era aquele homem futuro cadáver que o calor sufocou, e já hoje carne pútrida e castrada agarrando o amanhã que prometia tudo acontecer, para aqueles anos de arrependimento tão constante, para aquela existência infiel à natureza. Afonso resistia entre lençóis e tintas, sem forças numa banal masturbação. Talvez acreditasse no irreal o esteta, esse tal Afonso de Santa Maria Mãe de Muitas Águas, que para ali sonhava com deusa vulgar, uma que jamais houvera nascido e por esse motivo lhe fora obviamente recusado o baptismo. Amava, Afonso amava demais por debaixo da luz artificial, mas a noite viera e o Outono também naquela avenida marginal! Talvez o sonho fosse hoje e a horas mortas Afonso percorria toda a cidade por muitos túneis de metropolitano, ardia de febre e derramava lágrimas de poeta, alegremente recordava o amor ardente e efémero com uma ninfa, amante sem igual para definida fantasia, para que assim todos os dias pinte Afonso, com cores portuguesas, uma tela tridimensional, e amava mesmo em todos os corredores urbanos, era homem e o sonho era mulher, talvez porque aquele Outono enternecia como se a Primavera fosse. Mas nada volta e até porque não é de recordações que um homem vive, e tanto era o passado um mosaico de espinhos encravados nos órgãos vitais e genitais. E era assim que Afonso amava sem sossego, enquanto odiava o imbecil que lhe roubara a namorada, para o qual haviam juras de sangue e execuções adiadas, Afonso era homem e mamífero igualzinho aos demais. Era Outubro, o décimo terceiro dia, vinha Afonso vestido de preto, cor totalmente berrante, e com um pincel na mão havia escrito: - «Eu homem odeio e amo, em tanto estou confessado!» A tinta sobre alcatrão, a branco no preto da avenida Marginal, Afonso estava louco... «Mais um que se quer matar» - comentam os normais - «fala sozinho» - acrescentavam sobre esse tal que também andava sozinho e depois riam a bom rir confortáveis na sua normalidade, e toca a festejar vitória num Carnaval ocorrido em Quaresma no Advento do Natal neste tempo todo ele Comum e valha-nos Deus que nos baptizou como baptizou com o nome do Conquistador. E entretanto correu muito em veloz e atlética loucura, Afonso corria desvairado na direcção do Tejo, possesso queria abraçar o escuro e penetrar o silêncio, talvez beijar os humanos cães vadios e Afonso homem chorava a bom chorar, já nenhum parente o ouvia, nenhum sabor de pele humana o consolava. Afonso mergulhou, atirou-se ao escuro do rio que o recebeu indiferente, mas Afonso amava ainda, e foi amando que continuou a mergulhar, era um ir-se por paixão, e para quê uma explicação? De que vale uma idiota definição? Afonso da tal Maria Santa estava muito feliz, baptizado segunda vez, para desta não ter mais nome e ser homem simplesmente. Acariciava as águas e o rio possuía-o totalmente. Então cinco rostos, cinco corpos nus confundidos nas águas e nas lágrimas retiraram-lhe toda a roupa, doze mãos acariciaram-se mutuamente, vinte e quatro membros entrelaçaram-se e os líquidos foram tão quentes como os corpos, desta vez naquele mergulho até ao infinito. As cinco tágides adormeceram o tritão que tinham nos braços, despiram-lhe toda a dor e enxugaram-no de todo o sofrimento, e são estas as cinco fadas criadas pela fantasia, e que agora o levam para a torre do castelo de Lisboa, aquela torre-casa onde os segredos estão alguns lá guardados. É o amor que passa-o-tempo e pelo mesmo amor as fadas, tantas quantos Impérios há, guardam as paredes de pedra. Afonso homem vai lá todas as madrugadas um segundo-pensamento. Afonso não morreu, acredito que está vivo, tão real que com ele converso muitas vezes, e sempre me conta a estória do seu castelo-casa, das suas fadas e de todos os mergulhos que há para dar. Vou segui-lo, prometo que vou: - «Era uma vez...!»

Manuel Pessôa-Lopes

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