Ser ilhéu em parte incerta
O mar e a terra.
A terra breve exposta
à imensidão do mar.
A ilha. Pedaços de mar
e céu dentro de nós.
Maiores que a terra.
A estranheza dos olhares
que reflectem o vago vazio
de ser ilhéu em parte incerta.
A inconstância das nuvens
molda-nos o ser.
Frágil, incessante,
um pensamento:
"Fugir daqui".
Mas a ilha vai atrás de nós,
o mar, o cinzento e o azul.
E a chuva.
Rebenta-nos a alma pelas costuras,
sedenta de sol.
E as palavras serão sempre escassas,
capas de outras vidas.
(in)temporal
Mau tempo...
A persistência da noite sem fim.
As ondas avassaladoras chicoteiam os rostos
com rajadas de espuma.
Branda a noite por trás da vidraça.
Uma mulher borda o pano inútil,
o enxoval rejeitado.
Livre, o ser rebelde
abre-se em olhos desesperados.
O mundo não foi feito à medida humana.
Foi feito por uma diáfana desumanidade
para que os homens o escavassem da lava,
pedra a pedra,
perda a perda,
e se fizessem perder em horizontes de água,
a liquidez debruada,
linha a linha,
pelos fios coloridos da paixão demente.
E o sol não chega para retirar às noites
o que estas roubaram ao dia.
Gotículas
A chuva parou.
Pequenas gotículas, presas nas folhas verdes do canavial,
reflectem, como pirilampos no Verão,
as luzes fugidias das janelas vazias.
Os meus olhos rasgam a noite escura
e enchem-se, nessas minúsculas estrelas cintilantes,
da luz pura, trespassada de chuva.
A chuva parou.
E, enquanto espero que a água seque,
e o sol me devolva a luz
que dos meus olhos se apagou,
fico suspenso, na janela aberta,
por gritos mudos, sedentos de dia.
Ao piano
Senta-se na sua manhã tardia de cetim,
depois do pequeno almoço na varanda,
virada para o jardim,
onde nasce o sol e a lua.
O sorriso cerra-lhe o olhar,
verte-se-lhe em lágrima escorreita,
sem pressa de se vestir.
As flores dos momentos coloridos
enfeitam o jardim,
os encantos do tempo.
Odores a terra e a chuva diluem o ar,
perfumando a memória.
Lá fora, o dia ainda faz de conta
que os teus olhos amanheceram dentro dos meus,
povoados de fantasmas e gritos mudos,
esvoaçando-nos em sorrisos de silêncio,
em olhos de ver por dentro a alma nua.
A mão
... projectou no silêncio branco a alquimia do desejo,
o irreprimível anseio;
os dedos, como pincéis,
despertaram o inédito do prazer,
fazendo brotar coloridos espontâneos,
o perfume dos sentidos pelos poros da tela.
Estátua
... pele de pedra sob chuva contínua,
a tua dureza
esculpida em traços de abandono
revela-se aos olhos de quem te observa
com o coração aberto
à imprevisibilidade do momento.
E um desejo aguado,
embalado pelo salpicar de névoa,
mistura-se com a emoção salgada
dos olhares emocionados.
Não, não há abandono em ti,
és perenidade em pedra dura,
a que a água mole não tira
pedaços macios do teu ser.
quando a alma não é pequena...
... entra-se no sonho exagerado de existir.
E a vida latejante espera
pelo despertar boreal das emoções.
Valerá a pena sair da letargia
dos dias fechados,
do olhar imperturbado,
dos sorrisos ténues?
Quando a alma não é pequena
não se pode rejeitar a claridade
que nos expande os gestos.
Sai-se para a rua
e em cada esquina há um novo horizonte,
um espaço de aroma a presente espalha-se no ar
com o sabor a especiarias exóticas.
E um sorriso quase imperceptível
espelha a alma,
a preto e branco contida.
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