“ (…) Mãe, já sei que estás magoada mas não me vires as costas. Tu não. Estou aqui fechado. Enlouqueço! Sabes bem que não sou culpado de tudo o que me acusam… Não te preocupas comigo? Não tens coração? Quando vens ver-me?”
A culpa foi nossa. Permitimos-te crescer impunemente. Cobrimos-te a retaguarda e, se calhar nesse gesto, deixamos-te a alma a descoberto, à mercê de um mundo que não conhecias. Protegemos-te “dos outros”, não os deixamos entrar no teu metro quadrado de oxigénio, mas não pensamos que irias procurá-los…. O teu pai encheu-se depressa. Não tolera falhas, tu sabes. Diz que lhe trouxeste problemas sérios pondo em causa o seu status. Que vergonha, o filho de um conhecido cirurgião, preso por roubo e tráfico de droga. Consumidor. Vendedor. Vil. Estou proibida de dizer o teu nome. Todos os dias, sento-me com o teu pai à mesa e sofro, sozinha, a dor da saudade que me faz carpir sem lágrimas… Não posso dizer-lhe que sinto a tua falta, sem ser duramente lembrada de todas as asneiras que fizeste. Das intenções, que nem eu sei entender… Calo o grito que se me prende na garganta.
Se calhar a culpa foi minha. Só minha. Nunca deixei de acreditar em ti. Cada vez que tinhas um ataque de nervos porque te recusávamos dinheiro, insultavas-nos, ameaçavas-nos. Roubavas-nos. Partias o que sobrava. Semanas depois, reaparecias, caías no meu colo e choravas. Pedias mil vezes desculpa, dizias-te arrependido. Eu fechava os olhos e cheirava-te como uma fêmea cheira a sua cria, com um amor transcendente e cego. Eras outra vez pequenino, o meu doce rapazinho, e tudo, tudo eu te perdoava nesse instante. Fi-lo mais vezes do que devia, mais vezes do que o teu pai imagina, ao longo dos anos. Não te poupei de nada, dei-te uma falsa sensação de segurança. Quando tentei travar-te, já era tarde.
No dia em que foste preso, vieste procurar-me. Já não te via desde que me tinhas agredido, quatro semanas antes. Recusei-te dinheiro, fui firme. E tu não aceitaste a minha recusa. O teu pai ficou fulo da vida quando acabei por retirar a queixa. Como, como pude perdoar um sacana que agrediu a própria mãe? Sei lá… porque o amo… porque o sinto nas entranhas… Deixei que me abraçasses. Choraste muito, juraste mais ainda. Tudo ia ser diferente, a tua vida ia mudar. Foste preso à porta de nossa casa, no momento em que entraste num carro que não era teu. Quando te vi a ser levado pela polícia, algo morreu em mim. Lembro-me de entrar na cozinha e remexer os armários. Encontrei um produto que a Esmeralda usa para matar os ratos da cave. Levei-o à boca. Estava farta de vírgulas, queria um ponto final.
Acordei, na curva de outra vírgula, no hospital. Ainda cá estou. Desiludi o teu pai pela minha “fraqueza de espírito”, sussurrou-me ele ao ouvido quando me visitou… Diz que herdaste de mim essa característica que te faz ser “reles e sem carácter”. Não tenho forças para retorquir. Não quero estar com ele. Não devo estar contigo. Como pode o amor ser, afinal, o mais temível dos carrascos?
E agora escreves-me cartas, que recebo às escondidas, pelas mãos da Esmeralda, como se fossem de um amante que devo manter na clandestinidade. O carimbo prisional relembra-me a angústia que carrego. A frustração de não poder inverter o sentido das coisas e alterar o presente. O teu. O nosso. Não sei quando irei ver-te mas não há um só dia em que não pense em ti.
“Mãe, não me esqueças… Não me abandones à minha sorte. Onde estás?”. Não percebes que estou aí, presa contigo?
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