Até que o desemprego nos separe

 

Até que o desemprego nos separe

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Cumpro o mesmo ritual há quase duas décadas: levanto-me às 6h30m, visto-me cuidadosamente, tomo o pequeno-almoço com a mulher e os filhos e saio para trabalhar. Conduzo, em piloto automático, até à empresa e estaciono no mesmo lugar de sempre. No caminho até à porta dou-me conta de que, nos últimos três meses, já ninguém me espera. Regresso ao carro e conduzo até ao meu recanto favorito da cidade, onde o mar revolto abafa o meu grito, e ali me deixo ficar até a noite cair e eu regressar a casa, no mesmo horário de sempre. Quando chego, a mulher pergunta, sem sequer olhar para mim, “Como correu o teu dia? Trabalhaste muito? Estás com um ar abatido.” Há três meses que ensaio o discurso: “Joana, fui despedido. Já não há emprego nem ordenado, nem a viagem aos fiordes da Noruega que te tinha prometido para este ano.” Há três meses que me criticas as gravatas enquanto me enfias as torradas à frente. Enquanto finges prestar-me atenção, ensaio mentalmente a verdade indigesta. Na minha cabeça, digo-te a verdade sem gaguejar, mas a minha boca não se abre. Saio mudo, regresso calado.

Um dia destes, a Madalena ligou-te para te contar que o Rogério tinha sido despedido. O Rogério, nosso padrinho de casamento, padrinho dos nossos filhos e um amigo inestimável de horas muito amargas, foi um homem. Sentou-se com a Madalena, pôs tudo em pratos limpos e sugeriu de imediato maneiras de economizar que seriam apenas temporárias: a Madalena podia passar a tratar da casa (visto que nunca trabalhou) e dispensavam a empregada; ele abdicaria dos fins de semana de jet ski e ela das seis vezes por semana no ginásio; ele reduziria os gastos pessoais e ela o número de operações de estética. Dessa forma, poderiam viver razoavelmente bem até ele arranjar um novo emprego. Os pratos limpos do Rogério estilhaçaram-se em mil pedaços nas mãos da Madalena. Esta tratou de lhe lembrar que lhe havia dado os melhores anos da sua vida, que tinha desistido de tudo para casar com ele e que não ia agora trabalhar, “era só o que mais havia de faltar”. E tu, Joana, apressaste-te a dizer-lhe que o despachasse, que ela tinha toda a razão e que o Rogério não passava de “um egoísta, insensível, como todos os homens”. Fiquei ali, imóvel, atrás da porta. Incrédulo. É isto tudo o que tens a dizer aos nossos amigos, casados há quinze anos? Um tipo sério, fiel, dedicado, que sempre trabalhou para o bem-estar da família, tem um azar e perde o emprego e tu aconselhas a mulher dele a virar-lhe as costas, como se ele fosse uma peça comprada nos saldos e com defeito? Pobre Rogério, como me senti solidário com ele nesse momento. Fiquei triste, sobretudo por antecipar que, em pouco tempo, também eu seria protagonista de uma história semelhante. E já tão pouca dignidade me resta, Joana… Nem fui capaz de enfiar uma bala no cérebro e resolver isto como um homem… Chorei como um menino quando senti o metal frio encostado à têmpora.

Depois do telefonema, entrei na sala e sentei-me. Sentaste-te à minha frente, colocaste as minhas mãos entre as tuas e olhaste no fundo dos meus olhos. Há muito tempo que não o fazias. Era capaz de jurar que, quando te olhei de volta, vi aquela menina doce por quem me havia apaixonado. Os teus olhos diziam-me, serenamente, “está tudo bem. Estou sempre contigo, incondicionalmente, aconteça o que acontecer, até ao fim das nossas vidas.” Mas nunca fui muito bom a ler retinas… Disparaste, “Jura que nunca me farás uma sacanice destas, Luís! Tu jura-me.” “De propósito, Joana? Nunca.”

A verdade é que eu não tenho a coragem do Rogério. Resigno-me à minha sorte e colo com cuspo esta mentira, que se vai tornando maior, dia após dia. Enquanto houver relógios para vender e tu não souberes de nada, eu aguento. Enquanto não olhares para mim como um coitadinho, continuo a acreditar que me vais amar para sempre e que serei sempre o príncipe da tua história – ainda que nem sempre saiba escolher a gravata.

Depois, bem, depois, faço figas para que o Rogério se dê bem e arranje casa depressinha, para me dar guarida quando me puseres as malas à porta.

 

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