O PRIMEIRO MORTEIRO

 

O PRIMEIRO MORTEIRO

Português
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O PRIMEIRO MORTEIRO

 

Dalila acordou com o som de passos que corriam ligeiros, escadas acima, escadas abaixo; teve a perceção de que ouvia vozes a falar em surdina. Ainda estremunhada acordou o marido de mansinho, para ver se ele ouvia o mesmo que ela.

Ricardo mexeu-se na cama, resmungando por ela o ter acordado; porém, por via das dúvidas, colocou logo os ouvidos alerta. Nos últimos tempos falava-se muito de um possível ataque terrorista à cidade. Ele não tinha abordado nunca esse assunto com a mulher, para não a assustar.

Levantou-se, sem fazer ruído, e espreitou pelas frinchas do estore da janela do quarto, que tinha ficado entreaberto por causa do calor. Em simultâneo, ficou lívido; no quintal da sua casa e das casas dos vizinhos, soldados (alguns não teriam mais do que uns meros 16 ou 17 anos), armados de G3, corriam de um lado para outro, como loucos.

De repente, o tiroteio começou. Ouviram-se gritos, que provinham dos mais variados pontos.

Mandou Dalila ir de imediato para o hall da casa, o local mais resguardado da mesma (não tinha janelas), e a possibilidade de uma bala perdida os apanhar seria sempre mais reduzida. Ela entrou em pânico, mas fez o que ele lhe pediu.

Naquele preciso momento, ouviu-se um “BUM!!”, assustador e, simultaneamente, as janelas estilhaçaram-se deixando um rasto de vidros por todo o lado. Os gritos desesperados, no exterior, intensificaram-se de forma ensurdecedora. O morteiro que acabara de cair mesmo em frente à casa, transformara tudo em escombros; corpos voaram pelo ar, estropiados, estatelando-se, com grande ruído, no chão.

Um cenário de morte instalou-se, mesmo ali, à nossa frente;  morte de inocentes obrigados a ir combater, sem saberem o porquê; dos indefesos que, não fazendo parte dessa luta, pereceram nos escombros.

Ficámos hirtos, petrificados; não há palavras que possam descrever o misto das emoções que sentimos: horror, medo, náusea, pena, mágoa – um sem fim de sentimentos agregados a uma revolta, pela incapacidade de lidarmos com a situação.

O grito que, em Dalila, bem lá no fundo se gerara, fora abafado pelas mãos hábeis de Ricardo. Não se podia dar a conhecer a nossa presença.

Depois, um silêncio brutal. Os destroços eram a tumba de milhares de homens, mulheres e animais, apanhados pela surpresa daquele morteiro maldito.

A parede onde estava o quadro com a fotografia da nossa filha, estava integralmente cravada com os estilhaços dos vidros

 

NATÁLIA VALE

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