Pediram-me para escrever sobre a ironia. Fácil. Depois, difícil. Talvez por existir tanto disso na minha vida. Por ter nascido no meio de uma família rica em dinheiro, mas pobre em amor. Por ter o afecto comprado de uma ama e o desprezo gratuito dos que deveriam ter sido mais meus, tudo a tempo inteiro. De ter perdido a virgindade aos 15 anos, com alguém que certamente não foi o meu primeiro amor, e de me terem travado a vinda do neto bastardo, numa clínica para os lados da Linha. De ter aprendido todas as línguas necessárias, ter decorado todos os livros recomendados e ter acabado o curso que todos queriam, menos eu. Depois veio o casamento e com ele a réplica do que sempre me prometera nunca poderia acontecer. O acordar demasiado lento. A pasta de dentes estrangulada no sítio errado. O beijo melado de despedida. O jantar na mesa grande da sala. Os talheres dispostos ordenadamente. O mastigar da maçã nos ouvidos. Os canais de televisão aborrecidos. Os jantares de amigos casados. As meias na cama. O sexo de comunhão. A impaciencia na diferença do outro. Odiei tudo. E aguentei tudo. Tal como prometi nunca fazer. Seria o meu ponto de viragem, mas não foi. Depois, o filho. A confirmação do amor, a união do casal. Pois sim. Como queiram. E, ainda assim, veio o segundo e o terceiro e viveram uma vida de que não me lembro, porque a não contaram ou porque eu não a quis saber. Não sabem que, quem nunca teve, não sabe dar? E agora, se quero escrever sobre estas coisas, faço-o sob um pseudónimo, porque a liberdade de sentimento também existe, sim, mas aí de mim que alguém saiba aquilo que sinto e me ache má.
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