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São quatro da manha e a campainha toca. Malditos miúdos. Agora restava-lhe contar até três, cinco no máximo, para a criança desatar num berreiro. Depois era contar uma igual porção de tempo e a mama iria começar a verter leite, como se o soluçar da traqueia do fedelho tivesse ligação directa ao seu corpo e ao que jorrava dele. Sentira-o, inicialmente, a avantajar-lhe a pele, e depois a alargar-lhe os ossos, a modificar-lhe os gostos, a consumir-lhe as entranhas e toda ela a sentir-se enredada com o que nunca imaginou. No dia em que descobriu que estava gravida decidiu não aceitar e assim se manteve até ouvir-lhe o chiar de gato bravio, enquanto se livrava da dor e da confusão de tripas e de visceras, agachada na casa de banho do apartamento onde viviam.  Agora, nada mais lhe restava que não fosse passar alguns anos a alimentá-lo e a mudá-lo e a vesti-lo. E a aguentar.

São quatro da manha e a campainha toca. Miudos. Não lhes podia levar a mal. Também ele tinha tinha tido a sua dose de excessos de juventude, curados em garrafas efervescentes de Guronsan, de mão aberta a deslizar pelas campainhas noite adentro, do 5º andar ao r/c, em todos os prédios, sem excepção. Seguiram-se os risos, a ecoar rua abaixo. Olhou, com alguma ansiedade, para a caminha junto à parede e susteve a respiração, para não acrescer som algum. Mas foi em vão. Um choro miudinho surgiu, daquele corpo pequenino, fragil, acondicionado. Levantou-se devagar e aconchegou-o junto a si. Sempre acalentara a ideia de ser pai ainda jovem e quando Marta  o surpreendeu deixando o teste encima do lavatório, ficou deveras feliz. Depois, quando Filipe nasceu, percebeu-o estranhamente forte, corajoso e, ao mesmo tempo, indefeso. Agora, tudo o que queria era sossegar-lhe os medos e resolver-lhe os caprichos. E amá-lo para toda a vida. 

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