Era impossível haver quem, na Baixa, não conhecesse o Maia. Subia e descia todos os dias, continuamente, a Rua do Carmo, saxofone na boca, a chamar o tempo em que as pedras da calçada gemiam geladas e humidas da chuva que teimava em cair miudinha, e o fumo enlaçava os transeuntes que passavam de chapeu aberto e passo largo, na sufocante azafama das lojas em tempo de saldos. À passagem, havia sempre quem, por mera caridade ou remorso escondido, lhe deitava uma moeda, que agradecia sempre, com música. Este ritual recordava-lhe que a sua vida estaria para sempre ligada àquela rua. Um dia, de regresso a casa, sentara-se no degrau de uma escada estreita a olhar as coisas e as gentes, e a afagar o pêlo dos cães alheios. Pegara no saxofone, perdera a noção do tempo e, quando abriu os olhos, lá estava ela. Não era propriamente uma mulher bonita. Diriam os amigos que salvavam-na os olhos, de um verde impossível de esquecer. Percebera-a um pouco desajeitada, magreza acentuada, cabelo encaracolado a tocar-lhe nos ombros, lábios finos, descorados. Não parecia saber de musica, mas ali se mantinha, estática, pés colados ao chão e olhos brilhantes de água e soubera desde logo que, da mesma forma como lhe seria impossível parar sem desiludi-la, ela seria sua para sempre. Nesse dia levou-a para casa e pecaminosamente, peito cheio, alma a transbordar de ansiedade e sorriso nos labios, aprendeu mais sobre a arte de seduzir do que sobre a forma de dar alma às notas. Depois de Ana morrer, quem queria chorar de amor, bastava passar pela Rua do Carmo, já à tardinha, à hora das gentes e das coisas e dos cães alheios..
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