O vestido branco
Reparei em ti no ano de 1947, numa cerimónia religiosa na aldeia, numa das muitas cerimónias com procissões religiosas, como só o nosso Alto Minho tem.
Reparei em ti, por seres uma pequena menina mas muito bonita, de face rosada e pele branca e macia. Sabia que eras filha do Sr. Azevedo, um homem respeitado e com bens.
Ainda nesse mesmo dia, fui ao portão de tua casa e esperei poder ver-te no jardim. Foi quando alguém chegou por detrás de mim e me surpreendeu. Era o teu pai. Apresentei-me como António, o filho do Sr. Castro da aldeia.
Agora que olho para ti, aí vestida de branco lembro-me ainda do primeiro dia em que entrei em tua casa e senti as pernas tremerem de ansiedade e nervosismo.
O teu pai convidou-me a sentar e esperar, naquele grande salão de entrada. Assim fiz, até tu apareceres, vinda da cozinha. Cheiravas a fumo da lareira! Deverias estar a preparar o almoço. Saudaste-me com muita educação.
Tive de ser breve na minha explicação e até pouco romântico devido à pressão de toda a tua família! Queria namorar para ti, queria que me aceitasses receber mais vezes, queria que pensasses em mim e acreditasses que o meu amor era sincero. Queria poder falar-te ao ouvido, dar-te a mão, tocar-te no teu rosto. Queria ser motivo para as tuas insónias, queria ser desculpa para as tuas borboletas na barriga, queria ser culpado de te roubar um beijo e cúmplice de um amor. O teu silêncio fez-me acreditar que estarias igualmente disposta a aceitar.
Assim todas as noites, depois do trabalho feito, aparecia em tua casa, sempre sob supervisão das tuas duas únicas irmãs, onde conversávamos, era assim que se namorava naquele tempo.
Mas ao fim de uns meses, o teu pai deixou-nos conversar totalmente a sós. Ele estava decidido a deixar-nos casar logo que fizesses os dezoito anos.
Essa conversa a sós, foi mais um grito de desespero teu do que propriamente uma conversa a acertar o nosso futuro. Em tom baixo e num ritmo rápido, explicaste-me como te sentias sufocada em casa. Todos te tratavam mal e a única pessoa que sempre te apoiou tinha sido a tua mãe, mas que agora estaria submissa ao teu pai, não podendo nunca desrespeitá-lo nem contrariá-lo. Contaste-me como sofrias em pensar num possível casamento, que era o que mais querias, mas sentias que não o podias fazer. O teu pai não aceitaria que casasses e ficasses a morar em casa dele, já to tinha dito, a ti e às tuas irmãs, que nenhuma ficaria em casa depois de casarem, teriam de sair. E sair de casa, para ti, não estava a ser fácil, nem só de pensar!
A história agravou-se quando me disseste que o teu pai teria uma amante. Que teria uma família com essa mulher numa outra localidade minhota. Que a tua mãe adoeceu quando descobriu tudo e, se obrigou a ficar calada, por medo ao teu pai, aos boatos e ao abandono na miséria.
Continuas-te a contar-me que a madrinha das tuas irmãs, estaria a precisar de companhia e ajuda e iria levá-las para junto dela. Restarias tu ali em casa para tudo, mas a tua principal tarefa era a de proteger a tua mãe da loucura final.
Preocupava-te o facto de a casa ficar vazia e com espaço para a segunda família do teu pai. Preocupava-te que a tua mãe se remetesse ao silêncio eterno, à desgraça, à autodestruição e à vergonha. A tua mãe iria ser empurrada para empregada deles, até se anular e desaparecer seria um pequeno passo para uma mulher já assim demasiado frágil. Preocupava-te ainda o facto de nenhum homem querer estar ao teu lado, de te apoiar nessa decisão, por ser árdua de mais e, temias ficar solteira, toda a tua vida!
Aos meus olhos, tornaste-te ainda maior, como conseguias ser tão nova e desempenhar tamanho papel de decisão na vida de tantas pessoas e o quanto isso revoltava o teu pai. Desafiavas assim o teu pai, ao não quereres sair de casa, como ele aguardava impaciente e isso fazia de ti, uma filha rejeitada. Tive de te apoiar igualmente nas tuas decisões, porque só assim serias feliz.
Agora que olho para ti, toda vestida de branco lembro-me ainda, de quando tivemos de explicar ao teu pai a triste desculpa de não nos podermos casar.
Nesse ano, explicámos ao teu pai, que ainda não tínhamos as condições reunidas para casar e esperaríamos mais algum tempo, foi esta a forma que arranjamos para o empatar.
O teu pai bem que pressionou, mas eu desculpei-nos que ainda não tínhamos onde morar, pois queria dar-te conforto e dignidade. Isso ao teu pai parecia pouco importar.
Entretanto as tuas irmãs saíram de casa, para irem viver com a madrinha solitária. Uma vez mais, o teu pai nos perguntou quando casávamos. Desta vez, foste tu que conseguiste uma desculpa para o empatar, referiste que não tinhas terminado o enxoval. Faltava-te bordar uns lençóis, fazer uma manta e uns panos em croché comprar umas louças na feira e assim. Não poderias portanto, casar sem o essencial e isso iria demorar cerca de um ano.
O teu pai começava a ficar impaciente, pois na semana seguinte foi ele mesmo à feira e trouxe-te toda a louça que precisavas. Mas continuavas a dizer que não era suficiente para casares, ainda tinhas as mantas e os lençóis para terminar.
Desta forma, passou um, dois, três anos mais. Também eu começava a ficar impaciente para te poder dar um beijo, aquele beijo, o que seria o primeiro de muitos, esperava eu.
O teu pai começou a pressionar-nos novamente que deveríamos casar, para que não começasses a ser falada na aldeia pelos vizinhos e más-línguas. Achei até que o teu pai, quando nos deixava ficar a sós, seria para que caíssemos na tentação de nos envolvermos, e com isso, sermos forçados a assumir o casamento, antes dos boatos na aldeia se estenderem.
Muitas vezes choravas no meu ombro, por perderes a confiança em mim e no meu amor por ti. Comparavas-me ao te pai, receavas que te fizesse passar o mesmo, como ele fez à tua mãe!
Quando tínhamos quase cinco anos de namoro, o teu pai apareceu com outro pretendente para ti. Um rapaz de outra aldeia, que tinha mais do dobro da tua idade e pressa para casar.
Não conseguiste aceitar e fugias ao teu pai a chorar. Como ele te fazia isso? Ele sabia que era de mim de quem tu gostavas! O teu pai estava por tudo, queria-te casada o mais rápido possível, talvez por pressão da amante dele, para que saísses de casa e pudesse entrar ela.
Eu também não poderia aceitar! Eu queria casar contigo, mas tínhamos de manter as aparências de que não estávamos preparados e isso ia fazer-me perder-te definitivamente. Comecei a desentender-me com o teu pai, o que ainda o hostilizou mais.
Continuámos a namorar, mas cada vez eu mais me afastava do teu pai e, por vezes nem em tua casa entrava. Fiz-te ver que mesmo o facto de tu estares em casa, não ia fazer com que o teu pai deixasse a amante. Eles iam continuar a ter uma história, ele até tinha filhos homens, com ela! Mas a tua ideia mantinha-se, seria pior o teu pai trazer a outra mulher para casa, do que sair de casa para se encontrar com a outra mulher! Pelo menos para a tua mãe!
Como eu gostava que a tua mãe tivesse sido mais forte e se aguentar mais, para te ter apoiado.
Onze anos depois, a nossa relação mantinha-se estagnada. O teu pai continuava a tratar-te igual e a ausentar-se durante dias. Comigo mantinha-se distante e frio, nem o peso da idade que começava a sentir, o fazia ceder.
Agora que olho para ti, assim toda vestida de branco lembro-me ainda da proibição de quando estiveste doente. Quando fizeste os teus trinta anos, adoeceste.
Foste tratada em casa, sob observação de um médico e sob muitas dietas. Isso afetou-nos bastante, pois deixei de te ver. O teu pai proibiu-me de entrar, não me queria no mesmo quarto onde tu estavas, para não dar aso a boatos.
Não te vi durante esse tempo todo, nem sabia notícias tuas, só quando me cruzava com o médico e lhe perguntava se estavas melhor. Mas todos os dias à hora normal, eu ficava na tua porta à tua espera, durante várias semanas, até saíres tu pelos teus pés, apesar de ainda débil.
Um ano atrás de outro. O tempo passava e nem nos dávamos conta, talvez nos tivéssemos acomodado. Muitas vezes o meu sentimento animal de desejo por ti tinha de ser vencido, pelo meu sentimento puro de amor. Namorámos desta forma, durante vinte anos!
Agora que olho para ti, assim vestida de branco entristece-me pensar que nunca chegámos a casar!
Estás lindíssima como sempre, com os teus quase quarenta anos!
Estás bela, mas já perdeste a tua pele corada, perdeste o calor dos teus lábios, perdeste o aroma dos teus cabelos e perdeste sobretudo o bater do teu coração.
O teu pai também te observa de olhar baixo, talvez sinta remorsos do que te fez passar durante toda a tua vida. A tua mãe não tem reação, nunca mais saiu da sua melancolia doentia. As tuas irmãs choram de verem-te assim tão bela!
Ficas linda nesse vestido branco que te ofereci, como símbolo do casamento prometido que nunca chegámos a ter e em sinal da tua pureza que sempre mantiveste.
De tudo que sofreste com essa maldita doença final, que foi a única barreira que nos impediu de sermos felizes. Essa doença nos pulmões que te atirou para um hospital e que depois disso me deixaste só. Resta-te agora o vestido branco que nunca chegaste a usar e, que o vestes agora, para teu funeral nessa mesma aldeia que te acolheu e que agora se despede de ti, essa aldeia no seio do Minho!
Como um anjo, dormes serena nessa pureza de menina!
Descansa em paz Madalena, amor da minha vida!
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