“Rodin" , século XXI
Neide Heliodória
No século XXI os jornais ainda são de papel, mas chegam pelo Correio. Nem o Blade Runner previu tal apego aos métodos nada futurísticos. Uma matéria de algum neurologista desavisado noticia os cinco sentidos. O escultor lê aquilo e decide ir para seu estúdio tratar do 6º, quiçá 7º sentido.
Controvérsias à parte o fazem pensar nas contas que estão a chegar e nas obras inacabadas acumuladas naquele pequeno espaço de criação. E para transgredir em forma de arte: muito Beethoven, Ode à alegria foi escolhida para aquela manhã. O olhar atento do escultor observou um feixe de luz invadir o estúdio, inadvertidamente atravessando uma janela quebrada, um conserto adiado que envolveria vidraceiro e marceneiro. Pouco tempo para coisas de ordem prática.
Tomado então pela pulsão ele começa a trabalhar e pressente que o Outro escultor que mora dentro dele pode deixá-lo atônito e pela metade a qualquer momento. Eventualmente ele passa noites e noites fora. Seu dono, em tese, o procura, no entanto sabe que a busca é em vão. Contudo, hoje ele está por perto... E esbarra numa angústia que encontra um caminha para ser escoada. A coisa toda é quase física.
Ele então, o escultor que tem contas a pagar, entrega-se subservientemente ao surto artístico e decide absorver materiais, devorá-los, como um deus em seu banquete totêmico. A elaboração da matéria-prima é visceral e dramática: o inconsciente e o coração palpitam. A peça é então trabalhada, jogada ao frio e ao fogo, num choque, feito todos nós, ele pensa, no nosso tortuoso e imponderável destino freudiano: “Estranho e familiar”...
Paleta de cores, Tintas, texturas, metais, fundições, palavras con-fundidas com sensações orgásticas.Nasce então a obra: inusitada, única e ainda inominável. O artista está fora de si. Na sequência, o batismo: nome e benção... Porque a palavra bem-dita propõe ordenar o antigo caos.
A fresta da janela vem anunciar o término do dia. Exausto e esvaziado ele observa que já tem peças para uma exposição inteira. Ele pergunta pelo outro criador, no entanto ... Ele já toma sua taça de vinho em algum lugar por aí de endereço desconhecido.
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