Sépia

 

Sépia

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SÉPIA

 

O quarto jazia na penumbra. Lembro-me como se de hoje se tratasse. Um par de mãos abriu o mosquiteiro, mostrando-me o corpo lívido e petrificado. A brancura do cadáver e dos lençóis que o acolhiam qual mortalha, contrastavam com a densidade dos sais de prata – sobre-exposição. Na parede pressentia-se um crucifixo. De madeira. Temendo a admoestação, dirigi uma qualquer reza em latim de encontro à atmosfera. Como não se tornou suficiente para me escusarem, repeti-a num tom mais elevado (sempre senti uma inexplicável repulsa por cadáveres – este, embora outrora animado pela alma de um grande homem, não constituía exceção). O que obteve resultado. No resto do apartamento pude reduzir a velocidade de obturação sem perder profundidade de campo. Os candeeiros encarregavam-se disso. Os humanos comportam-se como os abutres: quando há mortes todos se reúnem. E vestem negro de urubu. A família e alguns amigos estavam espalhados pela casa. A viúva, nonagenária outrora esbelta, sentou-se à minha beira, dizendo palavras sem sentido. Estupefacto, observava-a com um ar um pouco comprometido, por desconhecer o significado do testemunho que me passava. Os seus dois irmãos limitavam-se a fazerem-me sinal para concordar. Eu desse modo procedia e ela desse modo continuava. Numa enorme tristeza e consumição, deixava cair no vestido que debutava, considerável número de lágrimas. Estupidamente, eu tentava apanhá-las com as mãos em forma de concha. Parecia-me um pecado demasiado grave manchar roupa tão imaculada. Entre as nossas faces havia um espaço de trinta centímetros, distância que se revelou suficiente, para o que para mim, ainda hoje, passados estes anos, não passava de uma alucinação: - “uma teia de aranha, está aí uma teia de aranha”. Os irmãos: sinal para confirmar. A viúva continuava a afirmar que um fio descia do teto e rasgava o vazio até ao solo, a curta distância dos nossos narizes. (Pensei no autorretrato de Man Ray em que um par de fios cruza o primeiro plano). Manos: confirmar. Imitei o gesto conveniente. – “Dona Ricarda, vamos fazer a foto de família? Vou só montar o tripé”. (Último fotograma, HP5 Ilford Plus 400).

 

 

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