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Português

Para a minha avó

A minha avó era grande, em corpo e coração, tinha braços fortes que abraçavam como correntes de algodão, e rugas largas, que não eram de expressão, mas de vida contada, encavalitada à espreita, em cada recanto de uma pele partida pelos capítulos do tempo. A minha avó não sabia ler nem escrever, debitava com desgosto a história da mãe que a proibira de ir à escola e da professora que, às escondidas, ia buscá-la a casa, numa tentativa de resgate que, de tentativa, infelizmente, não passou. Mesmo sem o sentido da coreografia das letras, narrava histórias como ninguém, tinha o dom da imaginação, e do perdão, e uma inteligência desinstruída, de um purismo desconcertante, que eu, mais tarde, viria a cobiçar. A minha avó tinha piada, imensa piada, cantava como quem fala em discurso aprimorado e adormecia em surdina todos os meus pesadelos. Tinha olhos perspicazes, vorazes, e uma intuição grave, feérica, que chegava a intimidar-me. A minha avó teve uma mão cheia de desgostos, provou as lágrimas que lhe sulcaram o rosto, mas era feliz com pouco, o pouco que só os sábios entendem que é tudo. Foi ela quem me ensinou que não há mal algum em tomarmos um pouco nossas as dores dos outros e acreditava, até, que, ao fazê-lo, era como se soprássemos sobre uma ferida ardente. Com ela aprendi a não me acanhar ante o envolvimento e, através do seu afecto, cedo descobri que ganhamos sempre que nos envolvemos, com alguém ou com alguma coisa que valha a pena misturar em nós. A minha querida avó enchia-me de beijos besuntados que eu não consegui guardar e inclinou-me sobre um mundo que revisito com altiva saudade. A minha avó morreu doente, muito doente, e, na sua doença, vislumbrei uma dormência que era a mais cruel antítese de tudo o que lhe conhecia. Vi-a desaparecer aos poucos e, na longitude dos dias, alimentei a ilusão de que teria tempo que bastasse para me despedir. Enganei-me. A despedida fica sempre por fazer, porque, no final, todos morremos de repente, mesmo quando a morte se aproxima devagar. Ficaram palavras por dizer, outras tantas por apagar e umas quantas por inventar. Ainda bem que assim é, afinal, temos a vida toda para ensaiar a dança da despedida e a infinitude para nos reencontrarmos.

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