Sobretudo

 

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SOBRETUDO

 

Era este o cenário: uma estação. De metro, de comboios. Um terminal rodoviário. Grande, com muitos corredores nas mais diferentes direcções. Escadas rolantes passavam por cima e por baixo sem se perceber aonde levavam. Tinha vários andares e os patamares superiores deixavam ver tudo o que por baixo se passava.

E agora, uma hora de ponta. Uma qualquer. Sobretudos pretos, sobretudos cinzentos e azuis escuros, sobretudos pela cintura, sobretudos pelo joelho, sobretudos pela canela, gabardines, casacos de cabedal, uma ou outra camisola de capuz, um lenço. Chapéus pretos, castanhos e cinzentos, chapéus de homem e de mulher, boinas, cabelos soltos. Pastas, malas, mochilas e mais pastas, castanhas, de crocodilo, daquelas que escondem cem mil euros.

Movimentavam-se todos com determinação para um caminho que já conheciam de cor, deslocavam-se como robots programados apenas para aquele fim. Dirigiam-se para direcções opostas mas, por alguma obra do destino, não havia encontrões. Uma harmoniosamente desgrenhada coreografia.

Os rostos escondidos, como se a medo de enfrentar o caminho e o olhar dos outros. Eram os chapéus quem acenava a um ou outro conhecido, se um infeliz acaso os colocasse no seu caminho.

Sabiam o que faziam, aonde iam, aqueles sobretudos. Talvez dirigidos por alguém ou pela força da rotina, ou da sociedade ou dos maridos ou das famílias, ou das calças demasiados apertadas que já eram do ano passado, ou pela falta de rosto.

Não sabia muito bem como, mas ela tinha lá ido parar. Talvez até soubesse: decididamente tinha saída naquela paragem, naquela estação. Talvez por iniciativa própria, talvez obrigada, talvez até inconscientemente. Pouco importa!

E o problema era exactamente esse: estava naquela estação, um suposto local de passagem, mas passagem para onde? Aparentemente, tinham-se esquecido de programa o seu sowftare e ela não tinha qualquer tipo de instruções.

Estava parada na estação.

No meio.

Passavam por ela em todas as direcções, os desdenhosos e arrogantes chapéus, e não fazia ideia para onde ir. Sentia-se a atrapalhar o ritmo coreografado e começava a avançar atras de uma pasta de crocodilo.

Não.

Não devia ser esta a direcção certa.

Experimentava outra e arrependia-se. Uma nova direcção. E outra. E outra.

Como se pode considerar uma direcção se não se conhece o destino?

Procurou em vão alguma placa, um guarda, um simples rosto que pudesse conceder-lhe uma explicação, uma indicação, um mapa.

Para dizer a verdade havia placas, bastantes até. Mas estavam cheias de vazio, de nomes que não lhe diziam nada. Estava à espera de encontrar alguma que dissesse “É por aqui”.

Poderia seguir uma corrente, infiltrar-se como se de mais um robot se tratasse. Chegaria a um destino.

- Mas qual?

- E isso importa?

- Como sei que é O destino?

- Sabes que é um destino.

- Não deve ser o meu.

- Não sabes.

- Pois não – concordou – mas não quero ir porque sim. Quero ir para chegar. Quero saber que não me vou arrepender. Quero saber que lhe estou destinada.

- Hum. – Limitou-se a interiorizar, como quem encerra a conversa.

- Tens medo da morte? – parecia que a conversa ainda não chegara ao fim.

- Da minha ou da dos outros?

- De ambas.

- Tenho medo da saudade.

 

 

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