Se não me amaste ao me veres sem máscara, não te detenhas mais aqui. Se depus a máscara e ainda assim não te provoquei abismos
(que é como quem diz pernas a tremer, boca seca, mãos empapadas, esgar parvo, olhos alheados e desatentos a tudo o que não for eu)
se ainda assim, se sentes se ainda assim, é porque não fui em ti maré que galgará paredões e rabelos aflitos, não fui agulha em brasa que se assinará na tua pele nem suspiro que se aninhará na tua cova de ouvido
(onde se aninham os suspiros sem covas de ouvido?)
não te detenhas mais aqui e abala, arrepia caminho. Ou então parto eu. Trazes o coração escaqueirado de nascença, todos o trazemos escaqueirado de nascença, e o nosso espaço em falta, o de ambos, não se encaixou, o nosso quebrado não se junta. Se fosses para mim e eu para ti, tiraríamos a máscara e veríamos uma hera a escalar-nos por dentro com a força dum choro, teríamos um gato de vinil a invadir-nos, pendendo‑se ao sol em parapeito, sem cuidados de ninguém, com cauda de estrelas
Mas não. O nosso encontro não passou de dedos de espuma das ondas, de beijos de amantes que se creem eternizados, mas afinal só um leve suspiro de nuvem, à mercê dos caprichos do vento. E venta tanto neste mundo. Por isso é que me admirei de te ver sem máscara. Não és infinitamente bela, mas jogas às claras. Despojada. Assumida. Esta sou eu e não sou outra. Quem quer, quem quer, casar com a Carochinha que é tão nua e tão fodida?
Armei-me em João Ratão e retirei a minha máscara. Foi duro. Duro de roer mostrar-me. Já quis conhecer muitas mulheres e todas infinitamente mais belas que tu, mas, bem sabes, custa tanto e esgota-se tempo e fundos. As máscaras, os jogos, os espelhos… Tu não, cartas viradas para cima. Despojada e à mostra para toda a gente ver. E eu também, como tu, às claras. Tão nu e tão fodido. Quem nos quererá, por muitas moedas d’oiro, Carochinha?
Nós queríamo-nos um ao outro, mas não somos um do outro, está visto. Apesar dos dedos de espuma e do leve suspiro de nuvem, aceita que não somos. Porque não quero menos que galgar paredões e rabelos quebradiços, que assinar pele alva de vermelho tingido, que aninhar suspiros em cova de ouvido. E tu também não mereces menos que uma hera pulsante pelas veias com a força dum choro e um gato mole, de cauda estrelada, que, por ser de vinil, toca uma valsa para dançar a dois, em ritmo ternário, sempre um pé no ar, querida Carochinha, sempre um pé no ar, porque no amor nunca se está quedo, desengana-te que o amor será tranquilo, sempre um, dois, três, um, dois, três, desengana‑te que o amor é tranquilo, que o amor é paz, é que venta tanto neste mundo, Carochinha
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mas se não ventasse, querido, não se veriam a voar suspiros inquietos, e que seria das covas de ouvido, plantadas num areal, em preguiça de caracol, à espera de serem colhidas por um fio de mar?
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